(Retirado de um artigo de Jean Balczesak, do Casus Belli – revista francesa da década de 1980, em tradução livre)
[Nota pessoal: neste texto o termo "aventura", comumente atribuido às histórias narradas na maioria dos RPG's não é utilizado: no seu lugar, o termo "cenário" se encaixa melhor. Aqui eu concordo com o argumento de Luciano Giehl do blog Mundo Tentacular. Uma história lovecraftiana não envolve heroismo, mas um crescente desespero que leva os investigadores a enfrentar criaturas além da compreensão e, mesmo no fim; o desgaste físico e, principalmente mental dos investigadores, não existe glória aqui.]
Este é um guia em ordem alfabética tem como objetivo centrar os Guardiões novatos (e alguns que mesmo não parecendo também o são) na ortodoxia do jogo. Note que ele não quer representar nenhum tipo de restrição nem de regulamentação férrea, mas sim que se trata de reflexões em texto escrito para aqueles que desejem utilizar o que melhor convenha a fim de dar mais profundidade às suas sessões e que ajude a uma melhor satisfação lúdica.
AMBIENTE
Todos estão de acordo com ele: o Chamado de Cthulhu é sobre todo um jogo de ambiente. A riqueza e as sutilezas que encerra não podem ser reveladas a menos que ao redor da mesa de jogo reine uma certa “tensão”. Nas melhores sessões, esta tensão pode adotar a forma de uma angústia latente que desemboca às vezes em autentico pavor, profundo e irracional. Alguns especialistas supõem que Lovecraft acreditava verdadeiramente nas historias que escrevia. No jogo, o Guardião deve persuadir seus jogadores que eles não estão apenas “jogando”.
O quadro em que se desenrola o jogo é um fator essencial. Os cenários que são jogados em salas barulhentas, com a calefação no topo e muito iluminada tem tudo para serem decepcionantes ou, no pior dos casos, enfadonhas! O Chamado de Cthulhu aprecia as sombras, o pó e o silêncio. Portanto, por que não deixar-se levar de vez em quando pela fantasia? Experimente jogar a luz de velas, em um sótão que cheire a mofo, cheio de tudo o que possa lembrar os aspectos mais tranquilizadores da civilização (TV, aparelho de som, etc). Perceberá que até mesmo os Guardiões podem ter medo, isso sem contar com o fato de que as velas tendem a provocar sombras sinistras que estão em perfeita concordância com a atmosfera de mistério macabro que deveria reinar durante o jogo.
BIBLIOGRAFIA
Para jogar e narra bem o Chamado de Cthulhu, é indispensável conhecer seus clássicos:
A Casa Temida
A Coisa na Soleira da Porta
A Cor Vinda do Espaço
A Música de Erich Zann
A Sombra Fora do Tempo
A Sombra sobre Innsmouth
Do Além
O Assombro das Trevas
O caso de Charles Dexter Ward
O Chamado de Cthulhu
O Horror de Dunwich
O Modelo de Pickman
Os Ratos nas Paredes
Os Sonhos na Casa Assombrada
Um Sussurro nas Trevas
(O site Lovecraft possui um vasto material sobre a obra de Lovecraft, além de ter publicado alguns livros sobre o autor)
COMUNICAÇÕES
Mais do que qualquer outro jogo de RPG, O Chamado de Cthulhu está direcionado para a comunicação. Graças a três habilidades bem desenhadas (Barganha, Lábia e Persuadir) que permite aos jogadores uma multiplicidade de interações com o universo do jogo. Mas o que faz falta é utilizar corretamente estas habilidades.
Contrariamente ao que acreditam os mais novatos, se comunicar no Chamado de Cthulhu não é uma questão de testes de dados. Um jogador não deveria dizer a uma aberração algo como “eu rolo Persuadir” ou “faço um teste de Lábia”. Ele deve primeiro falar com o Guardião como se este fosse o interlocutor de seu personagem, e em função de suas declarações e dos argumentos empregados, se lhe é permitido – ou não – fazer um teste da habilidade que o Guardião acredite que seja mais apropriada para a situação, podendo este bonificar ou penalizar tal teste (por exemplo, com +20 ou -20), ou mesmo considerar que a tentativa conseguiu um sucesso automaticamente. O jogo de RPG é assim!
COMBATES
É desolador constatar quantos investigadores passeiam por Boston carregando um canhão de 75mm no reboque de seu Ford Modelo T. Como resultado, os jogadores se dão conta de que os combates no Chamado de Cthulhu são um pouco desequilibrados, e com a pouca cumplicidade do Guardião ao tentar atenuar como pode semelhante “injustiça”.
Este tipo de atuação não pode ser aceito em nenhum caso. Além de ser absolutamente irreais (como a policia reagiria se avistasse alguém passeando por aí com armas de guerra de grosso calibre?) são também contrarias ao espírito do jogo, o encanto do qual radica em caráter “desesperado” de seus cenários.
A sobrevivência em Chamado de Cthulhu é todo um problema, e deve continuar sendo. Em contrapartida, e como bem dizem as regras, o Guardião não deve nunca se comportar como um inimigo dos investigadores, que já estarão bem servidos com seus problemas sem que o Guardião jogue mais lenha na fogueira.
Por sua parte, os jogadores devem saber que as armas podem ser úteis, mas não podem resolver tudo. Um pouco de reflexão vale as vezes mais do que um bombardeio de artilharia.
DISSIMULAÇÃO
Um grande defeito compartilhado por muitos Guardiões é permitir que os jogadores façam todos os testes de dados. Grande erro, visto que por razões de realismo evidentes o Guardião deve considerar que alguns testes forma parte de seu “mundinho reservado”. Assim, por exemplo, os testes de Localizar não podem ser feitos pelos jogadores visto que, se não encontraram nada em um registro, não tem porquê saber se realmente não havia nada o que encontrar ou se simplesmente falharam no teste.
Isto pode ser válido para a maioria dos testes de habilidades (um teste de Mecânica não pode arrumar algo que não tenha concerto) mas tampouco é aconselhável abusar. Se o Guardião realizar todos os testes de dados os jogadores podem ter a impressão de que não são mais do que espectadores. Tudo é questão de equilíbrio.
HUMOR
Já se deram conta de que, nos cinemas, quando está passando um filme de terror, parte dos espectadores tem uma irritante tendência a rir estupidamente nos momentos mais tensos da trama? Esta atitude esconde uma fraqueza muito grande: o medo de ter medo. Mesmo os jogadores de Chamado de Cthulhu podem as vezes ser vitimas dele, e não é raro ver sessões que se transformam em brincadeiras quando os investigadores estão caindo nela. Porém, existem alguns recursos simples para que o Guardião mantenha um espírito de jogo correto ao redor da mesa.
Paradoxalmente, a maneira de assustar por completo os jogadores ao longo de uma sessão de jogo é permitir que eles riam um pouco no inicio. Todos os cenários cthulhianos são construídas segundo o principio do “crescendo”: começa com pouca coisa e termina com um final apoteótico. Durante a primeira fase do cenário, geralmente consagrada às investigações documentais, não é difícil fazer piadas. Um NPC excêntrico ou uma situação atrapalhada permitirá que todos relaxem um pouco mas, atenção! Quando o horror começar a se instalar, menos brincadeiras! Neste momento o Guardião deve saber utilizar uma certa “crueldade”, não deixando nem por um instante que os personagens respirem.
SANIDADE
Elemento extremamente inovador das regras, a Sanidade não deve ser esquecida em nenhum momento, visto que constitui um auxiliar precioso para o Guardião. Com efeito, a medida em que este diminui, os jogadores notam que pouco a pouco e insensivelmente vão perdendo o controle de seus personagens, algo as vezes mais difícil de aceitar do que uma morte honrosa.
Não é necessário também abusar dos testes de Sanidade. Se um personagem vê um gato preto, ele não tem motivos para se desequilibrar psicologicamente. Alguns cenários oficiais as vezes são demasiadamente duros, impondo testes pouco justificáveis, pelos quais se deve ignorar categoricamente. Afinal, é você o Guardião, ou não?
Na medida do possível, espera-se que os jogadores tentem interpretar os transtornos psicológicos de que seus personagens são vítimas. Nem sempre é fácil, mas uma linda paranoia ou uma agorafobia exacerbada pode revelar mais do que um temperamento artístico insuspeito. Porque se privar dele?
MAGIA
Para que serve a magia no Chamado de Cthulhu? Para invocar (entre outras coisas) criaturas espantosas que se comprazerão devorando aqueles que os tenha invocado. E irão!
De fato, não dá pra esquecer que a magia é uma arma reservada para os essencialmente “maus”. O universo de Lovecraft não tem nada a ver com o de Tolkien, e o Chamado de Cthulhu não é sinônimo de D&D. Se seus jogadores querem aprender feitiços que estão em um grimório, permita. De qualquer forma não terão muitas ocasiões para usá-los. Por outro lado, o Guardião poderá desestimulá-los sobre este assunto.
Do contrario, se quiserem, nada os impedirá de desenhar seus próprios feitiços de defesa, mas neste caso procure não desequilibrar o jogo transformando os investigadores em cópias sofríveis de magos de 15º nível de memórias sinistras...
MEDO
O medo é uma sensação gerada essencialmente pelo desconhecido. Assim como é possível ter medo de muitas coisas (por exemplo, um arruaceiro bem armado), o verdadeiro pânico, essa sensação abissal da qual Lovecraft era um grande especialista, nasce sempre da ignorância. Como muitas outras, esta sensível regra psicológica se aplica perfeitamente ao RPG. Esta é a razão pela qual no Chamado de Cthulhu é sempre indispensável potenciar as duvidas e perguntas que os jogadores fazem. Durante as partidas deve-se fazer com que eles sintam que não são mais do que peões em um grande tabuleiro cósmico, mantendo cuidadosamente o “suspense”. Inclusive, quando o cenário estiver terminado não há motivos para revelar a última palavra da historia, com a qual sempre poderão imaginar o pior.
NARRAÇÃO
Algumas técnicas quase cinematográficas podem acentuar o clímax angustiante de um cenário se empregada convenientemente.
O Exorcista foi um filme que provocou uma verdadeira revolução no campo do terror na década de 1970. Sua eficácia radicava em parte por sua trilha sonora, a qual alternavam-se ruídos quase inaudíveis com sons amplificados. Isso criava rapidamente uma excitação ao limite do suportável, o qual desconcertava plenamente os espectadores. Esta técnica pode ser empregada perfeitamente no Chamado de Cthulhu, e para isto basta apenas que o Guardião adote o costume de “modular” suas frases. Quando o cenário chega a uma fase em que o mistério se espessa, convém falar lenta e suavemente, como se o fato de explicar a situação constituísse uma ameaça. Por outro lado, quando esta última se revela (descobrimento macabro, aparição, etc.) deve-se falar com um tom mais forte e espasmódico. É claro que faltará aos jogadores um pouco de pratica para notarem o truque de imediato mas, bem aplicada, é uma tática que consegue uns resultados no mínimo surpreendentes.
As descrições também tem uma importância primordial no Chamado de Cthulhu. Devem ser ricas, coloridas... e um pouco pedantes. Os psicanalistas sabem que as palavras por si só possuem um poder nada desdenhável. Algumas podem aterrorizar e outras suscitam prazer. Algumas outras agem profundamente sobre o subconsciente. Lovecraft recorreu em muitas ocasiões ao poder das palavras, e por isso utilizava giros idiomáticos destiladores e um vocabulário deliberadamente arcaico que tinha como objetivo provocar a inquietude do leitor. As traduções de suas obras conservaram em grande parte esta ideia preconcebida que proporciona encanto a seu estilo, colocando novamente em voga palavras como “miasma”, “mefítico”, etc.
Saiba ser impreciso também quando tratar de descrever o inimaginável. Evidentemente, um Profundo pode ser descrito como “um peixe gordo com braços e pernas”, mas ganhará uma potência evocadora de a descrever como “uma criatura viscosa e escamosa, de olhos opacos, cuja a boca goteja baba”. Existe uma profundidade diferente entre uma descrição “clinica” e uma “psicológica”. Não esqueça que deve impressionar os jogadores, não apenas diverti-los.
PERSONAGENS
A vantagem do universo lovecraftiano é que ele está muito próximo ao nosso, e é muito mais fácil se identificar com um médico ou detetive do que em um gnomo ranger ou um mago elfo. Então, porque não dar um pouco mais de profundidade aos investigadores?
Antes de iniciar a partida, peça aos jogadores que reflitam sobre a situação familiar e profissional de seus personagens. Quais são seus defeitos? Como se vestem? Quais são suas posições políticas? Estes detalhes podem adicionar cores ao cenário e, mesmo a existência dos investigadores sendo efêmera, isso não é uma desculpa para desprenderem tão pouco esforço.
VARIANTES
As regras foram concebidas para simular de forma eficaz a maioria das situações que um jogo de RPG moderno possa apresentar. Inclusive são muito bem adaptadas ao universo lovecraftiano, tudo o que se refere aos detalhes materiais podem ser modificados por completo sem que afete o interesse do jogo.
Entre as mais estendidas, está a variante “O Chamado da Aventura” que consiste em deixar de lado os Mitos de Cthulhu para se concentrar em ações puras ao estilo Indiana Jones ou Doc Savage. Mas também pode-se imaginar uma campanha que transcorra em meio aos gângsteres de Chicago ou no ambiente de terrorismo internacional.
A Chaosium compreende tais possibilidades de jogo e propôs as Dreamlands (cenários no mundo onírico), Cthulhu by Gaslight(Cthulhu à luz de gás, na Inglaterra vitoriana de Sherlock Holmes), Cthulhu Now! (cenários na época atual), dentre outros. Estes são apenas exemplos, e ainda existem muitos campos a explorar, como a ficção científica (no estilo “Alien, o 8º passageiro” ou “Hora do Pesadelo”) ou as guerras mundiais, que podem dar lugar a cenários mais do que espantosas.
Z... CONCLUSÃO
O mais importante para dominar uma partida de Chamado de Cthulhu é possuir o “fogo sagrado”: uma força de convicção suficientemente grande como que para anular as defesas psicológicas de todos os demais participantes. Levando a situação ao limite, um bom Guardião deve ter tanto medo como seus jogadores quando narra um cenário. Quando as primeiras faíscas aparecem, já não haverá quem se entedie, somente se pode tremer e começar a fazer perguntas angustiantes.
... E se tudo isso for verdade?
MAIS INFORMAÇÕES?
• Na Retropunk é possível adquirir o Rastro de Cthulhu, bem como cenários prontos;
• Na Editora New Order é possível adquirir as Regras Rápidas para O Chamado de Cthulhu 7ª edição, e em breve o módulo básico e cenários prontos.
• E no blog Mundo Tentacular é possível acompanhar matérias, dicas e curiosidades sobre os Mitos de Cthulhu.